Entenda a virada da logística do varejo brasileiro
De lockers a aviões – destrinchamos as estratégias dos varejistas para acompanhar a alta demanda impulsionada pela pandemia.
O varejo online brasileiro passou por grandes mudanças em 2020 – algo em grande parte atribuído às adequações em decorrência da pandemia de COVID-19. Enquanto diversas regiões do país entravam em regime de isolamento social, empresas varejistas e comerciantes, dos maiores aos menores, encontram no e-commerce a única saída para continuar trabalhando e gerando renda durante a crise sanitária e econômica do país.
Eu não gosto de falar o termo “beneficiados” em meio a uma pandemia responsável pela morte de tantas pessoas ao redor do mundo, mas é inegável que companhias de alguns setores específicos cresceram como nunca neste período – registramos o resultado de diversas delas aqui no Tecnoblog, nos últimos meses: delivery de comida, streaming de filmes e séries, e o setor de informática (impulsionado pela alta na venda de computadores devido ao trabalho remoto) são alguns exemplos. E, sem nenhuma surpresa, o comércio eletrônico faz parte dessa lista.
De acordo com Associação Brasileiro de Comércio Eletrônico (ABComm), o varejo digital cresceu 56,8% de janeiro a agosto de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. A pesquisa revela que o gasto médio por pedido diminuiu de R$ 420,78 para R$ 398,03, o que é justificável, já que mais produtos essenciais (menos caros) estavam sendo comprados. No balanço geral, houve 65,7% mais transações.
Nos primeiros meses, o sufoco foi grande. Acompanhamos as dificuldades de perto, noticiando as previsões de atraso em entregas. De lá para cá, a corrida de empresas de e-commerce foi essencialmente para conseguir cumprir a demanda exponencial, evitando que a oportunidade de crescimento fosse para o ralo.
Os investimentos dos principais players
Basicamente, todos os setores de uma empresa passam por mudanças quando algo tão diferente acontece. Mas vamos focar especificamente na área de logística, que é bastante complexa e compreende muito mais do que a entrega ao consumidor final.
Se antes da pandemia, o consumidor já estava buscando por entregas cada vez mais rápidas, depois dela, com a necessidade de obter itens essenciais para o dia a dia por meio do e-commerce, houve ainda mais desafios para o varejo eletrônico.
Pensar em entregas no dia seguinte ou no mesmo dia em um país do tamanho do Brasil não é uma tarefa simples. Primeiramente por conta da extensão do nosso território, e em segundo lugar por causa dos altos custos de distribuição atrelados ao transporte rodoviário, que é o nosso principal sistema logístico – adicione ainda as questões que envolvem as condições de infraestrutura das nossas estradas. E, bem, não é como se a entrega por drones fosse uma realidade por aqui.
De armazéns a aviões
Em 2020, as empresas de comércio eletrônico focaram seus investimentos para contornar esses problemas e tornar as entregas mais rápidas. Mas para muitas delas, a pandemia foi apenas o catalisador para um processo que vinha acontecendo há mais tempo. A Amazon já estava planejando armazéns para melhorar as entregas no Nordeste desde 2019, e inaugurou, em novembro de 2020, três centros de distribuição (CDs) em Minas Gerais, Distrito Federal e Rio Grande do Sul, fechando o ano com oito armazéns no Brasil.
O Mercado Livre também inaugurou o primeiro CD na região Nordeste (a empresa já contava com armazéns em Cajamar e Louveira, ambas no estado de São Paulo). A companhia surpreendeu ao anunciar sua própria frota de aviões no Brasil, com quatro aeronaves operadas por diferentes companhias aéreas – parte de um plano de investimento de R$ 4 bilhões no país em um ano.
Vale lembrar que a Amazon conta com frota robusta de aviões, mas nos Estados Unidos – por lá, a empresa ainda comprou 11 aeronaves em 2020 para garantir entregas rápidas.
A febre dos lockers
Outra solução logística encontrada para facilitar as entregas foram os lockers, armários inteligentes posicionados em locais estratégicos, como estações de metrô, lojas físicas e postos de gasolina, que permitem retirar os produtos encomendados durante um prazo determinado. A B2W terminou 2020 com 81 lockers instalados para clientes Submarino, Americanas, Shoptime e Sou Barato – mas prometeu 300 em 2021.
Os Correios também investiram nessa estratégia para melhorar sua malha logística. A empresa inaugurou o primeiro locker no Distrito Federal em outubro do ano passado, com planos de expansão para todo o país nos próximos anos.
Fulfillment para quem?
Ainda que os grandes centros de distribuição sejam uma estratégia de sucesso para cidades maiores, ainda há limitações no sistema fulfillment – uma aposta do ML, com o Mercado Full, e da Amazon, com o FBA.
Para Fabio Fialho, diretor logístico na ABComm e diretor comercial na Synapcom, “a criação de alguns CDs, como o Mercado Livre, não é sustentável ou muito escalável”.
Fialho afirma que as dificuldades são, basicamente, manter vários vendedores de produtos totalmente diferentes em centros de distribuição e conseguir que pequenos sellers dividam seus estoques.
“É uma oportunidade, mas escalar isso é muito complicado. Acredito nesse modelo, não deixo de acreditar no Full, mas escalar isso não é simples, então quem está dentro do Mercado Full ou do Fulfillment by Amazon (FBA) têm suas vantagens e sua relevância. Eu acho que os sellers ainda têm uma oportunidade de se conectar e se inventar na sua produtividade e logística junto aos Correios e outras transportadoras.”
Pure players vs lojas tradicionais
É claro que ninguém estava esperando um ano como o de 2020, mas enquanto algumas empresas já eram nativas digitais e puderam aprimorar suas operações para atender à alta na demanda durante a pandemia, outras tiveram que se esforçar mais para direcionar sua tecnologia e treinar seus funcionários neste novo cenário.
Para os menos familiarizados com a temática, cabe a explicação: vamos pensar em pure players como essas empresas que têm todas as suas operações no digital, como o Mercado Livre e a Amazon, por exemplo. Essas plataformas se diferenciam das lojas tradicionais, que contavam com estabelecimentos físicos, ainda que também tivessem setores pensando em vendas online – podemos citar as Casas Bahia e as Lojas Americanas, que têm marcas extremamente fortes construídas desde muito antes da explosão do comércio eletrônico.
Durante a pandemia, muitas lojas físicas fecharam ou tiveram sua movimentação bastante reduzida por conta das medidas de restrição aplicadas no país. Entretanto, grandes empresas, como a Via Varejo (grupo responsável pelas Casas Bahia e pelo Pontofrio), transformaram tais estabelecimentos em centros de distribuição, em uma movimentação estratégica para aproveitar estoques e entregar mais rápido os pedidos aos clientes.
Mas, do ponto de vista operacional, quem sai na frente em um cenário como o que tivemos no último ano? Para Luiz Vergueiro, diretor logístico da ABComm e diretor de operações do Mercado Livre, as lojas tradicionais podem ter uma enorme vantagem por contarem com lojas em cidades do interior, estando muito mais próximas desses compradores, mas há contrapontos.
“Se você tem, por exemplo, uma loja física em Sobral, no Ceará, certamente você chegará no mesmo dia ou dia seguinte à casa do consumidor que comprar um produto “classe A” em termos de volume de vendas. Mas se você precisar comprar um produto long-tail, aqueles que têm um giro muito mais baixo, certamente, esse produto vai ter que sair de um estoque centralizado. Muito provavelmente você não vai ter ele na loja.”
Segundo Fabio Fialho, há vantagens e desvantagens em ambos os lados.
“Eu acho que existem dois cenários. Quem tem loja física não necessariamente tem uma vantagem por já ter loja física. Existem os custos dessa loja física. Normalmente, quem tem [esses estabelecimentos], tem em locais de passagem, então, são metros quadrados mais caros.
Quando você é pure player, você não precisa estar em shopping centers ou em centros de passagem de pessoas. Então, você consegue criar rapidamente as dark stores, ponto de consolidação e distribuição, em locais de metros quadrados muito mais baratos. São dois modelos diferentes, e até complementares.”
Explosão dos marketplaces
No meio de tudo isso, não podemos deixar de abordar um ponto muito importante das vendas online: os marketplaces. Segundo dados da Ebit/Nielsen, esse tipo de comércio já representa 78% do e-commerce brasileiro.
Somente no primeiro semestre de 2020, os marketplaces foram responsáveis por 30 bilhões de reais em faturamento, o que representou crescimento de 56% em relação ao mesmo período de 2019.
Esse fenômeno não vem apenas do último ano, é claro. Em 2018, Jeff Bezos publicou uma carta reportando o estrondoso crescimento das vendas feitas por vendedores independentes terceirizados. Os números revelavam uma participação correspondente a 58% das vendas físicas brutas dentro da Amazon, a maioria feita por empresas de pequeno e médio porte.
Não é à toa que grandes empresas brasileiras passaram a apostar na logística voltada também ao marketplace. A Via Varejo anunciou uma nova plataforma logística para esses vendedores, em um sistema semelhante ao da Amazon. O Envvias permite que lojistas que usam o marketplace de Pontofrio, Casas Bahia e Extra aproveitem a rede logística do grupo para realizar entregas de seus produtos.
“O Marketplace hoje é uma oportunidade do grande varejista de ser uma prateleira infinita. De poder vender qualquer coisa – você não é especialista em comprar certos tipos de produtos, então, com o marketplace, você fornece esse catálogo estendido para o seu público com todos os benefícios de estar dentro da marca, ter o atendimento da marca, condições de parcelamento, e tudo mais.
Estamos dando a nossa capacidade logística e os nossos prazos de entrega ao seller. Mais à frente, a gente vai oferecer a loja como ponto de drop off, ou seja, o vendedor vai poder deixar o produto na loja; a gente vai poder ter entrega rápida para este seller – em duas ou três horas o produto estará na casa do cliente.”
Daniel Ribeiro, diretor logístico da Via Varejo
Segundo Fabio Fialho, a distribuição de plataformas que oferecem marketplace no Brasil facilita a inserção de pequenos vendedores no mercado.
“O Brasil, diferentemente da China e dos EUA, tem uma pulverização do seu varejo e dos seus marketplaces. Nesses países, eles dependem basicamente de Alibaba e da Amazon. A gente já tem 15, 20, 30 possibilidades de grandes marketplaces, sem falar dos pequenos e médios. Então, hoje todo mundo quer ser marketplace. O Banco Inter já é um marketplace, daqui a pouco o Itaú vai ser um marketplace, a Mastercard vai ser um marketplace.
No Brasil a gente tem multicanais, tem os regionais ainda. Então, eu vejo que esses marketplaces vêm ajudar os pequenos vendedores a andarem com seus negócios.”
Ainda somos mesmo tão dependentes dos Correios?
Se a pandemia tivesse acontecido há uma década, as coisas provavelmente teriam sido bem diferentes. Mas em 2020, o comércio eletrônico operou com auxílio de diversas empresas de entrega privadas, diminuindo em parte a dependência dos Correios.
A estatal, que beira a privatização total, teve um aumento de 514% de queixas entre os meses de março e julho de 2020, segundo o Procon-SP, apesar de ter anunciado esforços para conter os impactos da pandemia. Algumas gigantes manifestaram interesse na compra dos Correios durante o ano passado, entre elas Mercado Livre, Alibaba, Amazon, Magazine Luiza e FedEx.
Em entrevista ao Tecnoblog, o diretor logístico da Via Varejo, Daniel Ribeiro, afirma que a empresa está cada vez menos dependente dos Correios.
“A gente tem praticamente todos os modelos de entrega, mas os Correios têm uma participação pequena. Cada vez mais os varejistas estão saindo dos Correios, por razões de custo e nível de serviço, e o varejista está dominando essa cadeia logística. A gente usa bastante dois modelos: entregas via transportadora direta ou seguindo um modelo de uberização, que a gente lançou com a ASAPLog. Temos lojas de onde saem pacotes pequenos, e motoristas que se cadastram no aplicativo passam lá, pegam o pedido e entregam. Nosso maior share de entregas já é a ASAPLog, no last mile”.
Entretanto, para Fabio Fialho, os Correios ainda têm bastante importância para o comércio eletrônico em geral, devido à capilaridade alcançada no país.
“Eu acredito que a atuação dos Correios é super importante. Eu acho que ainda é o principal player, ou um dos principais players. Os Correios têm sua virtude e seus problemas. Eles têm que ir para um caminho de abertura de capital na bolsa. Eu acho que a empresa precisa de governança e ele precisa muito mais de uma estrutura corporativa importante em cima. Então uma privatização não precisa ser necessariamente com uma venda, pode ser feita com uma estrutura de governança, e com um IPO na bolsa.
Certamente, quando a gente fala de last miles locais, ou seja, posicionamento de estoques, a empresa entregando essa última milha, facilita que novos entrantes de delivery participem do mercado. Então, as microempresas de frete participarão ativamente de sua região, serão mais regionalistas. Os Correios contribuem de forma mais nacional.
Você tem uma base da pirâmide, que é o pequeno vendedor, dependendo muito dos Correios – o que não significa que é ruim. É muito bom, porque os Correios têm uma capilaridade muito mais pronta, uma logística reversa muito mais eficiente, que ajuda este pequeno e médio empreendedor.”
Resta saber por quanto tempo a vantagem de capilaridade dos Correios será mantida. Cabe lembrar que a Amazon anunciou, no final do ano passado, que está trazendo seu serviço próprio de entregas ao Brasil, começando por São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília, mas com planos de expansão para todo o país.
Perspectivas do varejo eletrônico para 2021
Em 2021, o fator imprevisibilidade é consideravelmente menor. De acordo com a própria Organização Mundial de Saúde (OMS), é irrealista pensar em um fim para a pandemia ainda este ano, mas muitas pessoas já estão mais adaptadas à nova realidade – o que inclui as compras online, o que tende a impulsionar ainda o setor.
Para as empresas, a diferença é que agora há mais preparo. E as perspectivas, no geral, são boas.
“Eu só vejo crescimento, e com cada vez mais oportunidades de geração de leads. Acho que quem vai ganhar o jogo é quem souber se posicionar no estoque e oferecer oportunidade de portfólio ao consumidor. A gente tem, hoje, diversos canais com oportunidades de captura e venda digital. Cada vez mais o consumidor é digital – a gente viu 8 milhões de entrantes em 2020, que são novos compradores.
Efetivamente, não tem como vender menos, só tem crescimento. Obviamente, quem acompanhar esse crescimento com oportunidade de portfólio e estoque vai ganhar o jogo.”
Fabio Fialho
Fonte: Tecnoblog