O que os 40 anos da Apple nos dizem
Quem começa um negócio, por mais otimista e visionário que seja, jamais poderá prever sua trajetória. Para quem olha de fora uma marca de sucesso bilionária também dificilmente conseguirá compreender a trajetória percorrida até ali. A Apple, que se enquadra nessa descrição, fez 40 anos no começo deste mês. Alguns conhecem sua velha história de “uma empresa que foi criada numa garagem”, mas não os detalhes do jogo corporativo entre décadas que a fizeram chegar ao seu status atual.
Se você viu o lançamento de 2015, Steve Jobs, filme de Danny Boyle, e se também leu a biografia homônima que deu origem ao filme, escrita por Walter Isaacson, já deve ter uma boa ideia dos acontecimentos em torno da Apple e do aclamado gênio do mercado de tecnologia. Seja qual for seu conhecimento dessa história, convido você a analisar alguns temas extraídos do livro e do filme.
Sociedade empresarial é um casamento incerto
Um dos primeiros aspectos relevantes de uma empresa nascente é a sociedade entre pessoas com interesses convergentes e que idealizem juntas o negócio. No caso da Apple, uma dupla de Steves – Jobs e Wozniack (que, na verdade, se chama Stephen) – foi responsável por dar vida ao empreendimento. Foi um encontro quase cósmico, como num romance. E, como todo romance, tinha potencial de sofrer reviravoltas e chegar ao fim.
Após escrever esse parágrafo, folheei a biografia, que li há cerca de 3 anos. E sorri quando encontrei o capítulo que trata do surgimento da parceria entre Jobs e Woz, como era carinhosamente chamado por muitos. O título desse capítulo, que é o segundo do livro, é “Um estranho casal”.
Desde o princípio, a estranheza dessa relação se dava na distinção de propósitos e mesmo da visão quanto ao papel da tecnologia para os usuários ou a sociedade em geral. Wozniack, um engenheiro eletricista de muito talento, via a tecnologia como uma revolução acessível e aberta; ele é um hacker nato. Jobs, um visionário com faro para negócios, brilhante nas ideias, no discurso, no marketing e nas vendas, pensava diferente de Woz e queria escalonar e rentabilizar o que criaram, vendendo a preços lucrativos.
Essas divergências acabaram por separar a dupla em projetos diferentes, já após o segundo produto da empresa, o Apple II. Woz queria dar continuidade a este, que já era o carro-chefe das vendas, aprimorando seus recursos e lançando novas versões. Porém, Jobs tinha uma visão mais futurista. Graças a ele, a Apple tem o conceito de inovação que tem até hoje, apesar de sua morte, da consequente mudança de diretoria e alguns atropelos nos últimos anos.
Sugiro a leitura da biografia para que se conheça em mais detalhes essas diferenças. Mas o que podemos concluir, a priori, é que sem Jobs não haveria Apple, uma marca forte e almejada. E sem Wozniack não haveria produto sequer para que a Apple fosse possível. No fim das contas, é como tentar imaginar um filho com pai ou mãe diferente. Não seria a mesma pessoa, não haveria talvez nem mesmo um filho. A Apple é uma filha dos dois Steves, hoje órfã de ambos.
Em toda bela filosofia há contradições
É interessante observar que a Apple, não obstante o número de fãs, é uma marca com contradições, assim como o Facebook, o Google e tantas outras grandes corporações. Existe uma filosofia pregada, e existem, do outro lado, práticas questionáveis que põem em xeque tal filosofia.
Uma dessas contradições é que a Apple pregava a democratização do computador pessoal com a venda a baixo custo. Disse Steves ao seu biógrafo, “adoro quando se pode levar um design realmente ótimo e simplicidade de uso para algo que não custe muito” (Steve Jobs, por Walter Isaacson, pág.25). Mas, aparentemente, a IBM e a Microsoft estiveram bem mais perto dessa filosofia que a grande maçã, a despeito dos diferenciais técnicos, de qualidade e de design desta.
O fascínio de Jobs pelo melhor design – não só a estética externa, mas a melhor disposição das placas eletrônicas e drives – foi uma das habilidades que desenvolveu no período em que trabalhou na Atari, segundo a biografia citada. É creditada a Jobs, por exemplo, a diversidade de tipografias que existem nos computadores atuais, graças ao curso de caligrafia que fez e que o inspirou.
No entanto, a busca pela perfeição e as inovações associadas a isso fizeram com que os custos dos produtos Apple fossem bem elevados, e estes se tornaram, ao menos a princípio, exclusivos para as classes altas. Claro que hoje produtos como o iPhone ganharam maior popularização. Mas os preços de lançamento continuam sendo um ponto fora da curva no mercado de dispositivos digitais.
Ainda sobre o quesito democratização e popularização, a proposta pessoal de Jobs nunca foi a inovação aberta. Por essa razão, os produtos são quase hermeticamente fechados, lacrados, inacessíveis a não especialistas. Já desde o Macintosh, que originou a linha de computadores Mac que perdura até os dias de hoje, a Apple firmou sua posição em manter o hardware completamente fechado ao acesso do usuário comum e um sistema também fechado, tornando seus produtos incompatíveis com dispositivos de outras marcas.
Outra grande contradição da Apple diz respeito ao capital humano, composto por profissionais ultratalentosos, rigorosamente selecionados. E rigorosamente gerenciados! Muitos são os relatos de assédios morais cometidos por Steve Jobs, conhecido pelo seu temperamento oscilante e muitas vezes explosivo, muito em função do que chamam de “campo de distorção da realidade”, algo que o fazia não enxergar conscientemente situações de abuso, agindo de forma pragmática.
Na sua equipe interna, havia sempre demissões voluntárias. O próprio Wozniack é um dissidente, que além de divergir de Jobs, se sentia desrespeitado profissional e intelectualmente por ele. Primeiro, os dois passaram a trabalhar em equipes distintas, focando em lançamentos distintos, até o ponto de Woz decidir realmente “pedir o divórcio” e deixar a corporação para seguir seu próprio rumo, distante de Steve.
Outro fato que ainda mancha a imagem da Apple são as notícias sobre as fábricas da Foxconn na China, que montam os produtos da marca. Há pautas recorrentes em jornais sobre as condições desumanas de trabalho, com largas jornadas, tendo sido reportado ainda suicídios de alguns operários sobrecarregados e deprimidos.
É fato que Jobs foi um gênio dos negócios, do design até, como a Wozniack é dado o devido prestígio como engenheiro eletricista de importância para a história mundial das tecnologias da informação e comunicação. Mas, se analisarmos a figura daquele gênio sob o ponto de vista das relações humanas, em especial no contexto corporativo, tiraremos mais lições do que não fazer do que um modelo a seguir.